segunda-feira, 1 de junho de 2015

Aterrissagem no meio do Himalaia

Estava a caminho de Leh, capital do Ladakh, na Índia, fronteira com Paquistão, China e Tibete. Zona conturbada. Bombas, ataques terroristas, brigas entre hinduístas e muçulmanos, ameaças atômicas entre Índia e Paquistão, milhares de refugiados tibetanos. No caminho, a bordo de um Boeing 737, a paisagem do Korakoram, uma das cadeias do Himalaia, me arrebatou. A beleza paga a viagem até Leh – e deixa troco. Sobrevoei quilômetros e quilômetros de picos nevados, agudos como se feitos ontem à noite, encostas íngremes, passos profundos, geleiras, canyons, vales, morenas. O paliteiro, de tão alto, quase espetava a fuselagem. Naquela vastidão branca, nunca se acharia um avião que tivesse a insensatez de cair. A beleza rude, até agressiva, pela insignificância que reduziu a mim e à máquina que me transportava, misturou fascínio e temor. Depois de me acostumar com a grandiosidade, percebi a graça do conjunto: o Korakoram é uma bandeja de suspiros saindo do forno. Suspiros de pedra e gelo.
De repente, um ponto ainda mais proeminente. É o K2, avisou o piloto, o segundo pico mais alto do planeta e o mais difícil de escalar. Com arrepios adicionais, dei-me conta de que estava longe de casa, perto do fim do mundo. Relaxei-me. O fim do mundo é lindo.
O frio na barriga triplicou quando enxerguei a pista de Leh, situada a 4000 metros de altitude e cercada por precipícios. Julguei impossível aterrissar um 737 na extensão de um campo de futebol. E, no final da pista, um monastério budista fazia as vezes de um gol. Nada disso. A construção estava mais para um goleiro que, em guarda sobre um morro, se dispunha a cercar tudo que viesse do céu ou da terra.
O piloto manobrou entre os cumes e, viciado em fortes emoções, literalmente deixou a aeronave despencar. Quando eu jurava que bateria no solo com a ponta da fuselagem, o Boeing ergueu o nariz. Tocou o asfalto já com os freios travados, porém com o dobro da velocidade aconselhável, assim me pareceu, impressionado pela rapidez com que rolávamos. Eu só pensava no danado do monastério cada vez mais perto e no susto dos monges budistas que, após o estrondo, encontrariam dentro de casa um bando de corpos irreconhecíveis.
O avião começou a tremer. Tremeram as cadeiras, como que arrancadas do suporte, tremeu o teto, tremeu o chão. As mesinhas dos assentos desprenderam-se, os bagageiros abriram-se, objetos caíram, um japonês levou uma garrafada na testa, a dor liberou seu pavor num grito agudo. Na cozinha, pratos espatifaram-se. O carrinho de bebidas se soltou, avançou sobre os passageiros. Duas aeromoças com os cintos afivelados se entreolharam, trocaram expressões de pânico. A mais despachada esticou a perna, calçou as rodinhas com o sapato, resolveu o problema.

Do lado de fora, chegava o urro ensurdecedor de metal contra metal, qual disco de freio de carro completamente desgastado. As turbinas assobiavam de tanto soprar o ar com fúria. Os flaps, eu os via a ponto de saltarem fora da asa. É o fim do mundo para mim, concluí. Vou virar churrasco.
No segundo anterior à tragédia, veio o cavalo de pau. O 737 rodopiou, cantou pneu, rangeu e, milagre!, ficou quietinho voltado para o terminal, resfolegante, pálido com a enorme descarga de adrenalina. O japonês com galo nascendo na testa bateu palmas. Todos a bordo o acompanharam. Aterrissar em Leh é emoção garantida. Beleza também.

2 comentários:

Terezinha disse...

Ufa! Acabo de aterrar no fim do mundo.Jesus!
Acho que também acharia lindo. Apesar de...

Anônimo disse...

Adorei a frase: "O fim do mundo é lindo"! Que alívio!!!...rs...
Parabéns, primo! Beijos, Carla Giffoni