sexta-feira, 5 de junho de 2015

Encontro com o demo e o puma na Patagônia

Sozinho no Sul do Chile, em pleno inverno patagônico, eu voltava do vulcão Antillanca rumo a Puyehué, quando o entardecer me pegou no final da caminhada de vinte quilômetros. Silêncio e paz a meu redor. Nem passarinho fazia barulho. Poucos quilômetros depois de Aguas Calientes, avistei um cavaleiro. Fiquei contente. Uma alma viva! O homem, de grande estatura, montava um descomunal cavalo preto. Vestia calça, camisa, jaleco, luvas e capa que cobria as ancas do animal, tudo preto. Até o chapéu de Zorro era preto. O olhar fixava um ponto no infinito, duro como bridão, contundente como espora. Trotava com galhardia, tão ereto que parecia amarrado a uma estaca de ferro sobre o arreio. Cumprimentei-o com um buenas tardes, foi lacônico comigo:
– Buenas – e implantou um meteórico sorriso na face pálida.
A rápida abertura da boca permitiu-me entrever os dentes metálicos, cor prateada. Nem um pingo de esmalte. Sorriso de aço. Senti arrepios. Quem usaria e abusaria de tanta esquisitice no corpo? E se fosse um bandido? De mim não sobraria nem um mindinho para contar meu sumiço. Além disso, a estranha figura bem poderia passar pelo demo: modelo perfeito, personificação do tinhoso em muitos relatos. Pobre cavaleiro... Tratava-se provavelmente de um fazendeiro retornando ao lar no fim do dia, e minha cabeça o associava ao nem-sei-o-quê.
Minutos depois, enquanto examinava os espetaculares mergulhos de rochas e depósitos de cinza vulcânica expostos nos cortes da estrada, testemunhos de violento passado geológico que continua no presente, enxerguei um puma a cinquenta metros de distância. Animal imponente, onça acinzentada pelo lusco-fusco, assustador. Farejamo-nos em reconhecimento mútuo, exalei o pavor, estudou-me com interesse. Petrificado, tentei despistar a bambeira nas pernas, a fraqueza que atrai o ataque do felino. Espichei o corpo, ergui os braços, pus a mão na cintura, só faltei ameaçá-lo: “Qualé, gatinho, vai encarar?”. Haviam-me alertado para a presença do bicho na área, matador sagaz. Ainda devia estar digerindo a criança que comera na véspera. De barriga cheia, olhou-me outra vez, atravessou a rodovia e sumiu, sem me dar a mínima. E eu dei no pé. Corri até que, com o coração na mão, cheguei a Puyehué. Ir tão longe para acabar no estômago de puma, onde se viu?
Na manhã seguinte, voltei ao vulcão Antillanca. De carro.


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