terça-feira, 30 de junho de 2015

SERES FANTÁSTICOS

     Por amor à fantasia, invisto o tempo em histórias que arranco do baú da imaginação. Elas estão lá dentro dos miolos, quietinhas, à espera de um estímulo para eclodir. Ofício esquisito: quanto mais se delira, mais se é julgado competente. Tanto melhor. Estou no lugar certo.
     Toda mente precisa subtrair-se ao dia a dia, tirar o pé do chão, carece voar à frente do tempo. Por isso, o fantástico costuma preceder a realidade, quando não a inventa. Todos lutam para torná-lo palpável, quase sempre com êxito. Seres fantásticos nos cercam.
     Sou, contudo, um desafortunado. A fantasia coletiva me discrimina. Nunca vi as criaturas maravilhosas que pululam na Terra. Num cemitério, em noite de Lua cheia, sequer uma alminha penada me acudiu. Assombrações me deixaram a ver navios nos cafundós por onde andei.
     Dizem que o diabo sabe para quem aparece. Pois nunca apareceu para mim. Já pensou quanta crônica renderia essa figura anacrônica? Não é um azar dos diabos o meu? Na outra ponta do espectro, tampouco me adularam anjos, querubins, serafins e afins.
     A maior frustração, entretanto, foi nunca ter encontrado um ET, apesar de minhas dezenas de horas a olhar o céu. Não vi nem disquinho voador. Na noite escura, só me apareceram vaga-lumes, aviões, estrelas cadentes.
               Somos seres feitos de sonho. A falta de fantasia exterior talvez me obrigue a buscá-la dentro de mim. Donde o prazer de inventar histórias. A contínua procura, todavia, gera uma dúvida: existo ou me imagino? O espelho resolve a questão. Eu me vejo, logo existo. Reflito, logo existo. Meus quatro braços, três pernas, duas cabeças e estes nove olhos vermelhos comprovam. Sim, existo. 

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Roteiros gratuitos de Londres - Regent´s Park

    Se me perguntarem qual é meu lugar favorito de Londres, não hesito: Regent´s Park, em Westminster. É um dos parques reais. Tem muito verde mesmo no inverno, muita flor no verão, beleza o ano inteiro. Tem aves também. Milhares delas, de todo o mundo, nos ninhos, na água, nas árvores. Algumas são tão atrevidas que atacam o sanduíche que estamos comendo. Outras pousam na gente e, com delicadeza, ronronam seu apetite. Acabam levando um agrado. Não é proibido alimentar os pássaros. A rainha deve economizar um bocado de dinheiro, tamanho o apetite dos bichos.
    Ando pelo Regent´s Park em estado de graça, às vezes quase congelando, às vezes debaixo de chuva, às vezes cheio de cor ao redor, o olhar cativado pelos animais, pelas árvores, pelos canteiros, pelas fontes, pelo gramado. Os frequentadores podem pisar e correr à vontade no gramado. Ninguém vai lhes chamar a atenção. Há, ainda, campos de futebol. Uns quinze, um colado ao outro, cheios nos fins de semana. Certa vez, faltou um jogador para completar o time. Os desesperados para jogar me chamaram. Em poucos minutos, desmanchei a fama de que todo brasileiro é bom de bola.
     Em junho e julho, há as rosas. 12.000 pés, de 400 espécies. Cada uma tem um nome. Nome de artista de cinema, de gente conhecida, de realeza, de cor extravagante, de lugar famoso. Eu gostaria que as flores durassem para sempre. Em outubro, já se foram. Só restam os tocos, podados para a primavera seguinte. À sombra dos carvalhos, os bancos de jardim sempre me convidam para um cochilo. Numa tarde quente, sonhei que vi o coelho da Alice no País das Maravilhas. Daí nasceu uma história.
     Circular por todo o parque é gratuito. Para quem não se importa em gastar um pouco, há o Teatro ao Ar Livre. Tchekov está em cartaz nesta semana com a peça A Gaivota. Se chover, pode trocar o ingresso para outro dia. Por algumas libras, você também pode ver canguru, wallaby, pinguim, mico-leão-dourado, gorila, tigre, aranha, cobra e ocapi no Zoológico, um dos maiores da Europa, que guarda os últimos exemplares de algumas espécies. Meu bicho favorito é o Professor Hu, uma salamandra gigante da China. Feio demais. Feiura em excesso vira charme.
       O Regent´s Park foi fundado em 1804. Na época, os ingleses, exageradamente orgulhosos de seu poder, achavam que a natureza devia ser melhorada pelo talento humano. O Regent´s Park foi uma dessas tentativas de aprimoramento. Melhorar a natureza é tarefa desnecessária, até impossível, mas os londrinos chegaram perto. Quando nada, faz mais de 200 anos que o Regent´s Park encanta as pessoas. Sou uma delas.

sábado, 27 de junho de 2015

O QUE É A REALIDADE?

     O que é a realidade? A pergunta intriga os seres humanos há milênios. A mesma realidade é percebida por todos? O que eu vejo é aquilo que você vê? Houve quem afirmasse que o real é aquilo que vislumbramos no sonho, e este momento que agora vivemos é, na verdade, uma ilusão. Outros disseram que tudo é ilusão, é maya. Na raiz da filosofia ocidental, o pensamento de Platão conjetura a existência de uma realidade além do aqui, onde reside a perfeição, onde está o ideal.

     No século 20, a física quântica, ao se defrontar com o problema da realidade, concluiu que ela depende de quem a vê, isto é, depende do observador. Ora, a ciência não precisava de tanta elucubração, de tantas equações para chegar a esta conclusão. Os escritores sabem, desde sempre, que a realidade depende de quem a observa. Por isso, narram sob diversos pontos de vista. Cada autor, cada personagem possui sua realidade. Cada história cria uma realidade. A literatura, como um todo, é uma expansão da realidade. Estranhamente, ela não passa de uma ficção. 

sexta-feira, 26 de junho de 2015

A arte das artes

       Admiro a arte, todo tipo de arte, da escultura à pintura, da música à dança. Frequentei espetáculos, exposições e museus em muitos países. Escrevi dois romances que acompanham os movimentos de composições de Bach e Albinoni. Em outro, falei do prazer de comer um quadro de Pollock. No entanto, somos seres feitos de palavras. A palavra moldou nosso cérebro, ela lubrifica nossos neurônios, com ela nos comunicamos a maior parte do tempo, sobretudo através dela transmitimos nossa experiência, nossa história, nossos acertos e erros. A palavra criou-nos, e a literatura é a quintessência da palavra. Somos, em suma, fruto da literatura.
          Preocupa-me a importância cada vez menor que temos dado à literatura no Brasil. Ficamos cada vez mais pobres intelectualmente, mais tacanhos. Cada vez mais, cultuamos a mediocridade. A cultura da mediocridade leva à mediocridade da cultura. Sim, claro, existem investimentos do Estado em livros, há campanhas de leitura, porém são atividades pontuais, efêmeras. O Brasil hoje se guia pela mídia e pelos grandes mecenas, e a mídia e os grandes mecenas relegaram a literatura a plano secundário, como se pudéssemos prescindir das palavras, como se computadores e televisão vivessem sem palavras, como se ideias surgissem sem palavras, como se o futuro brotasse sem palavras, como se a reflexão sobre o ser humano acontecesse sem a literatura.
          Até os jornais e revistas atiram nos próprios pés quando diminuem o espaço dado aos livros, ajudando a cassar o gosto pela leitura. Diego Velázquez talvez tenha sido o mais genial pintor espanhol. Passo horas a admirar sua obra-prima, o quadro As Meninas, cuja beleza, humor e complexidade me encantam. No entanto, um contemporâneo dele, Miguel de Cervantes, escreveu Dom Quixote. Quem nos diz mais a respeito de seu tempo, de nós mesmos, de nossa dimensão, de nossa transitoriedade e permanência, de nossa fantasia, de nossa humanidade? Quem? Velázquez ou Cervantes?


quinta-feira, 25 de junho de 2015

Crônicas de nuestra Latinoamérica

        Como falam mal de Vargas Llosa. Não apenas de sua premiada literatura, sobretudo de suas posições políticas. Dizem que ele é elitista, antirrevolucionário, anticastrista, antichavista, conservador ao extremo. Já disseram que, se tivesse sido eleito presidente do Peru, ele teria substituído as armas nacionais pela suástica. Na raiz do problema, está sua decepção com o regime cubano, após a perseguição promovida por Fidel Castro a intelectuais e à liberdade de criação e expressão. De defensor da revolução, ele passou a crítico. Então começaram as porretadas. Haja porrete.
          Nada melhor que beber direto na fonte para a gente tirar as próprias conclusões. Você pode fazer isso, com pouco esforço, se ler as crônicas de Mario Vargas Llosa. No livro Sabres e Utopias, da Editora Objetiva, ele expõe suas visões sobre a América Latina. E o faz com o peito aberto. Critica a direita e a esquerda, põe o dedo na ferida de problemas que resistem aos séculos, mostra como caudilhos se valem da mudança para, lampedusamente, manter tudo do jeito que está.
         Em textos escritos desde a década de 1960 até 2009, acompanha os acontecimentos políticos do continente, bem como sua própria evolução intelectual. Assim, elogia o esforço educacional e cultural em Cuba, antes do rompimento com Fidel, critica Pinochet bem como diversos movimentos revolucionários, aponta erros da gestão de Lula, faz o elogio da democracia brasileira e de outros países latinos, analisa a obra de diversos autores, como o nosso Euclides da Cunha.
          Tudo isso e muito mais. Depois de ler Sabres e Utopias, você conhecerá a visão de um grande escritor sobre nosso continente. Poderá concordar ou discordar, mas seguramente ganhará uma bela reflexão e descobrirá motivos que levaram Vargas Llosa a levar o Nobel de Literatura. Ele mereceu. É um gênio da literatura contemporânea. 

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Dilema do Brasil: inventar ou imitar?

Ao final da tarde de vinte e dois de setembro de 1786, na cidade italiana de Vicenza, reuniram-se cerca de quinhentas pessoas para discutir o que havia trazido maior proveito às belas artes, a invenção ou a imitação. Os defensores da imitação venceram, pois, segundo uma testemunha ocular dos debates, “não afirmaram senão o que a malta pensa, ou é capaz de pensar”. 
De repente, flagrei-me a pensar: o que é melhor para o Brasil, inventar ou imitar? Na cultura, submetemo-nos com frequência ao que vem de fora, copiando muita coisa supérflua e de mau gosto. Quem quiser exemplos folheie as revistas e os jornais, ou veja a televisão. Até parece que a inauguração de uma pracinha em Nova York e o aniversário de um ator em Hollywood são efemérides brasileiras, tamanho o espaço que ocupam. Isso é indigência cultural. Nessa toada, no dia em que a cadelinha da Casa Branca ficar doente, teremos vigília, velas, promessas e milhares de brasileiros cantando música cáuntri  em prol da saúde canina. 
          O antigo dilema, entra governo, sai governo, toma conta de Brasília: devemos importar ou desenvolver tecnologia própria? Repisam-se os argumentos costumeiros: não se deve reinventar a pólvora; é mais barato comprar know-how lá fora; nascemos, pela extensão climática e territorial, com vocação para a agricultura; devemos deixar esse negócio de tecnologia para os norte-americanos, chineses e japoneses, anos-luz à nossa frente. Existem, é claro, os paladinos da autonomia, defenestrados pela eterna alegação: não temos dinheiro – e tecnologia. E as decisões ficam para depois.
Em conseqüência, o fosso se alarga, e sucumbimos ao subdesenvolvimento. Quando nada, possuímos setores de ponta que pouco devem aos estrangeiros. Uma maneira de incentivá-los seria consumar o casamento entre a universidade e a indústria. Em outras palavras, transformar a pesquisa em patentes. Os chineses oferecem um caminho adicional. Copiam para exportar, de olho no exemplo anterior dos japoneses. Com o dinheiro arrecadado, desenvolvem as próprias novidades. Com tanta cara de pau, acertaram na escolha.
Inventar ou imitar? A questão continua aberta, porém Vicenza ainda pode lançar mais luz sobre ela. Em 1786, a cidade estava decadente após o auge no século 16, quando a ousadia de criadores como Palladio revolucionou sua arquitetura e a transformou em referência na Europa. Teria a ausência de ímpeto e força motivado o resultado do debate?
Por falar em ímpeto e força, a testemunha ocular citada foi Goethe. Em viagem pela Itália, ficou seduzido pela cultura peninsular, a ponto de escrever duas obras ditas italianas, Ifigênia e Torquato Tasso, sem contudo perder a identidade de autor. A história de Fausto tampouco é original. Alguém entretanto a separa de Goethe? Seu gênio fez da imitação uma invenção, criando uma obra-prima.
          A moeda, quando lançada, pode dar cara ou coroa. É preciso fazer a escolha, com toda a informação disponível. Se inventarmos apostar na parada da moeda em pé, aí sim teremos um problema. O Brasil ainda não sabe disso.

terça-feira, 23 de junho de 2015

Uma voz da África

      Você já ouvir falar no escritor Akinwande Oluwole Soyinka? Não? Pois não se envergonhe. Pouca gente, no Brasil, sabe quem ele é. Mais conhecido por Wole Soyinka, tem oitenta anos, aparência de setenta, e foi o primeiro africano a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, graças a uma obra que “numa perspectiva cultural bastante ampla, com toques de poesia, aborda o drama da existência”.
          Nigeriano, nascido numa família iorubá influente, Soyinka estudou na Inglaterra e, além de escrever romances, poemas e peças de teatro, tornou-se ativista político e lutou contra as ditaduras nigerianas e o apartheid sul-africano. Como escrever é perigoso, Soyinka foi preso. A prisão lhe deu munição para escrever mais ainda.
          Em suas obras, Soyinka contrasta a sensibilidade dos poemas com a complexidade dos romances, comparados aos de Faulkner e Joyce. Seu trabalho traduzido mais divulgado “É Melhor Partires de Madrugada”, coleção de memórias, só é encontrado em Portugal. Infelizmente as editoras brasileiras lançaram aqui apenas uma de suas obras: a peça teatral “O leão e a joia”, publicada pela Geração Editorial.
          Para lhe oferecer um gostinho da poesia de Soyinka, traduzi parte de seu poema “Dedicatória”. Aqui está:

          Umedece teus lábios com sal,
          que não seja o de tuas lágrimas.
          Esta chuva-água é presente dos deuses
          — bebe sua pureza, frutifica na hora certa.
          Leva, pois, os frutos à boca,
          corre para devolver o milagre de teu nascimento.
          Cria marés humanas como as ondas,
          imprime tua lembrança nas areias que ainda guardarão fósseis.

          Todo escritor gostaria que suas palavras virassem fósseis. Fósseis são pedras, resistem ao tempo, dialogam com a eternidade. É o caso de Wole Soyinka.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Elogio da masturbação

Mark Twain, o famoso autor norte-americano de As Aventuras de Huckleberry Finn, livro liberado para todas as idades, considerado por Ernest Hemingway e William Faulkner a obra fundadora da literatura nos Estados Unidos, possui um lado menos conhecido, aquele do ativista político, do crítico da religião, do grande humorista.
          Quando abordou esses assuntos, sua obra foi banida, censurada, rejeitada, só publicada postumamente. Em plena ascensão do imperialismo ianque, Mark Twain era anti-imperialista ferrenho e criticou as guerras de conquista norte-americanas, sobretudo a invasão das Filipinas, onde seus compatriotas assassinaram, a sangue frio, de uma vezada, seiscentos filipinos muçulmanos. Resultado: a obra crítica só saiu em 1924, quatorze anos depois da morte do escritor.
          Twain era antirreligioso, adversário contundente do cristianismo. Afirmou que, no sangue arrancado de inocentes pelos cristãos, todas as frotas do mundo navegariam com grande conforto. Resultado: essa acidez corrosiva só chegou ao público em 1972.
          Até seu humor cáustico ficou escondido por décadas. Um de seus discursos, proferido num clube de escritores e artistas em Paris, em 1879, aos quarenta e seis anos de idade, só apareceu em 1943, em edição de apenas cinquenta exemplares. Cinquenta exemplares, não mais. 
              Que perigoso discurso era esse? Trata-se do engraçadíssimo Algumas reflexões sobre a ciência do onanismo. O autor desentoca, com candente ironia, possíveis masturbadores ao longo da história, ligando seus momentos mais criativos ao chamado vício solitário. De Homero a Darwin, não poupa ninguém. Diz que o costume eliminou mais crianças que qualquer outro meio conhecido.
          Por esse bom humor, o discurso ficou banido durante sessenta e quatro anos. Ainda bem que a internet permite que, hoje, todos leiamos as Reflexões sobre a ciência do onanismo. Mas, por favor, não o faça sozinho, trancado no banheiro. Divida com os amigos, recomende, ponha em circulação, anuncie, toque a corneta. Rir faz bem à saúde. 

sábado, 20 de junho de 2015

Poesia morde?

       Você não gosta de poesia, acha a poesia de hoje difícil de entender, tem preguiça de percorrer os labirintos de um poema atual? Uai, sabe que eu também fico às vezes nessa sinuca de bico? A culpa não é da poesia, sempre necessária e reveladora, mas dos modismos adotados por alguns poetas. O resultado costuma ser, de fato, uma confusão, um desencontro de palavras, uma verborragia desprovida de sentido.
          Desconfio de que, com frequência, nem o próprio poeta saiba o que tenha dito, se é que tivesse algo a dizer. Um deles me confessou que desejava apenas fazer ruído. Sim, ruído. Se esse era o objetivo, por que não gravou a barulheira no centro da cidade às seis da tarde? O interessante é que alguns desses gajos recebem louvações da mídia, que tenta nos forçar a concluir que são o ideal da arte, o suprassumo das musas, o modelo do futuro. Somos enganados e ficamos com a tristeza de desgostar de poesia, não é mesmo?
          Vamos separar as coisas. Quem faz poesia assim é uma minoria. Existem grandes poetas, novos e antigos, para todos os gostos, desde os que fazem grandes voos verbais aos gênios que sintetizam enciclopédias em meia dúzia de palavras. Esses não passarão feito passarinho.
          Enquanto romancista, invejo a capacidade de dizer tanto em tão pouco. Os poetas me tocam bem fundo, revelam passagens escondidas entre nossos abismos interiores, tiram o peso do corpo e da alma, abrem avenidas para o pensamento, questionam ideias, expõem conflitos, revolvem nossas entranhas, oferecem momentos de graça e vislumbram o paraíso. O mundo é feito de poesia. O bom poeta sabe disso e a garimpa onde menos esperamos. Arranca-a da pedra, do caminho, do asfalto. O resultado é puro deleite, puro encantamento, pura poesia. Poesia não morde. Afaga.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Sou mentiroso profissional


         Como todo escritor, sou mentiroso. Dever de ofício. Quanto maior nossa competência para mentir, maior sucesso gozamos entre os leitores. A mentira bem engendrada faz nossos personagens mais reais, mais palpáveis, mais críveis, mais humanos. 
      Romancistas e contistas são mais que fingidores, vamos além, inventamos vidas e mundos, trazemos alegrias e tristezas, juntamos e separamos pessoas, matamos a rodo, criamos e resolvemos problemas no papel. No papel, nada mais. Daí nossa alcunha: ficcionistas. Não podemos acreditar em nossas fantasias. Muitos autores incorreram nesse erro e se deram mal. Hemingway, por exemplo, achava que tudo se resumia à escrita e, sem escrever, a vida não valia a pena. Deu no que deu. Tiro de espingarda na cabeça. Cano duplo.
          Leitores também confundem ficção com realidade, o que é, aliás, muito comum. Já me abordaram na rua para perguntar se sou realmente como alguns personagens que criei, justamente os mais polêmicos. Fizeram coisas mais terríveis com outros autores. Por exemplo, influenciados por um livro chamado Os Sofrimentos do Jovem Werther, do alemão Goethe, muitos jovens cometeram suicídio no século 18. Goethe mentiu com tanta competência que transmitiu para muita gente o desespero do amor não correspondido, provocando mortes em série.
          O costume dos autores afirmarem que são mentirosos é antigo. Fernando Sabino escreveu uma bela crônica sobre isso, na qual se confessou mentiroso compulsivo desde pequeno, daí a decisão de derramar nas palavras sua obsessão e ainda ganhar um dinheirinho.

          Agora, cá entre nós, quem não mente de vez em quando? De escritor, de mentiroso e de louco todo mundo tem um pouco. Ou você é a exceção que faz a regra? Pense nisso e tenha um bom dia. Com toda sinceridade.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

A derrota que se transformou em vitória

Ao conceder a Ernest Hemingway o Nobel de Literatura de 1954, o Comitê do prêmio citou nominalmente o menor dos livros do escritor. Trata-se de uma obra tão pequena que é usada para avaliar a rapidez de leitura nos cursos de leitura dinâmica, onde os alunos avançados devoram suas noventa páginas em meros dez minutos.
          Que livro é esse? Trata-se do polêmico O Velho e o Mar, a epopeica captura de um marlim com mais de cinco metros pelo cubano Santiago, nas águas do Golfo do México. Após quase três meses sem pescar nada, Santiago se vê, sozinho, às voltas com o fabuloso marlim que custa a dominar, para em seguida ser assaltado por tubarões que lhe descarnam a presa, até deixar pouco mais que a espinha dorsal do peixe. Essa espinha dorsal traria a Santiago a consagração em seu pequeno vilarejo e, enquanto história, renderia a Hemingway extraordinária popularidade mundo afora. Uma curiosidade: para não terminar sem peixe como Santiago, o escritor mantinha em seu barco uma submetralhadora para afastar os tubarões.
          Muitos críticos acharam a novela pobre, sem rumo, assinalaram que o autor resvalava na religiosidade barata, no monumentoso, até no plágio ou releitura de outra novela norte-americana, Moby Dick. Outros, ao contrário, por sinal a maioria, viram em O Velho e o Mar, o toque da genialidade, a obra que culminaria a carreira de Hemingway, inclusive garantindo-lhe o Nobel. Eu me coloco entre os admiradores.
          O livro possui momentos de grande inventividade, narrada no estilo simples, à primeira vista sem grandes recursos, característico do autor de Por Quem Os Sinos Dobram. Para tirar a teima, por que você não avança através dessas noventa páginas de O Velho e o Mar e tira a própria opinião? Aposto dez por um que vai gostar.









quarta-feira, 17 de junho de 2015

Dois paraísos no Canadá

Ponha num só lugar os seguintes ingredientes: rios cristalinos, lagos cor turquesa ou brancos de gelo, céu azul, montanhas nevadas, florestas bem preservadas, dezenas de cachoeiras, algumas azuis, geleiras quilométricas, canyons escavados pelas eras glaciais e pelas chuvas, bandos de pássaros e bichos, alguns dos mais antigos e estranhos fósseis do planeta, ar sempre fresco com odor de pinheiro, paisagens deslumbrantes.
Misture bem esses ingredientes, descubra todas as formas para combinar e recombinar tanta variedade e formosura. Pronto. Você chegou ao Oeste do Canadá, aos Parques Nacionais de Banff e de Jasper, isto é, você está num dos mais deslumbrantes cenários da Terra. Aproveite. Aqui se respira a natureza em estado puro, sem aditivos. Caminhar pela região revigora a mente e o corpo. Pode ser por um dia, três, uma semana, duas. Há trekkings para todos os gostos.
          Se você for do tipo que gosta de estrada e conforto, Banff e Jasper também o encantarão, pois podem ser vistos em todo o seu esplendor da janela do carro ou do hotel. Estão ligados por duas bonitas rodovias, a Canadá 1 A e a 93, que passam por Lake Louise (famoso pela cor turquesa), enquanto margeiam as águas límpidas dos rios Bow e Athabasca. Duzentos e sessenta quilômetros boquiabertos separam os dois parques que, pela paisagem deslumbrante e pela riqueza da flora e fauna, se tornaram Patrimônios Naturais da Humanidade pela UNESCO. Título merecido.
          Banff, criado em 1885, é o terceiro mais antigo parque nacional do mundo, tem mais de 1.600 quilômetros de trilhas, quase 3.000 locais para acampar e mais de quatro milhões de pessoas o visitam a cada ano. Gente do mundo inteiro o procura, sobretudo para longas caminhadas. Aliás, estas tiram o fôlego. Não só nas trilhas, às vezes difíceis, como na deslumbrante paisagem. A mente vive epifanias.
          Jasper, maior parque das Montanhas Rochosas, data de 1907, possui grande variedade de animais silvestres e recebe mais de dois milhões de turistas por ano.  
          Bons hotéis, bed&breakfasts, restaurantes e serviços, a preços razoáveis, atendem aos visitantes de ambos os parques. Se preferir, acampe. A baixíssimo custo, com conforto e segurança.
          Há lugares onde a natureza caprichou mais ao fazer o mundo. Banff e Jasper estão entre eles. São dois pedaços do paraíso transferidos para a Terra. Dão saudade pelo resto da vida.

                                                                                                   Para Gabi.



terça-feira, 16 de junho de 2015

O leitor também é autor

        Dizem que todo escritor tem suas manias. É verdade, temos sim. Falo por mim e pelos colegas. Uns gostam de determinados temas, outros detestam certas palavras e expressões, uns têm ojeriza a adjetivos, outros abominam somente os advérbios terminados em mente, há os que fogem dos ditados populares, a maioria odeia crítica.
          O leitor também é escritor, pois recria cada obra que lê. Posto de outra forma, aquilo que um autor escreve não é necessariamente o que o leitor capta. Dez leitores terão dez diferentes interpretações do texto. Assim, em cada romance, conto ou poema, coexistem muitos autores. Talvez por isso o leitor também tenha suas manias. Conheço gente que escolhe livro pela grossura, tanto pela falta quanto pelo excesso. Uma amiga só adquire romances com mais de quinhentas páginas, um parente meu se amarra apenas em volumes com menos de cem páginas. Há quem, por princípio, ame a autoajuda, quem rejeite ensaios ou sonetos, quem prefira histórias com muito diálogo, quem leia o livro de trás para a frente, quem somente o folheie, quem nunca passe da orelha, quem adore diários. Nos Estados Unidos, onde há estatística para tudo, descobriu-se que um terço das obras compradas nunca foi ou será aberta, pois servem apenas de enfeite, para mostrar. Quem diria.
          Um amigo meu considera cada livro um ser vivo, com personalidade própria, até voz. Imagino sua casa à noite. De repente, escapam gritos pavorosos da estante, mas ele nem liga, pois sabe que vêm da Divina Comédia, provavelmente do círculo infernal. Imagine, se a moda pega, a bagunça que as bibliotecas vão virar. Imagine um livro sobre a Segunda Guerra Mundial tomando vida. Tiroteio e bombardeio dia e noite. O que seria de nossa sanidade? Nunca mais dormiríamos.

          Pois é, leitor também tem suas manias, tão variadas quanto as dos escritores. A ficção permite que a gente se aproprie da obra alheia e a transforme em coisa nossa, com nosso tempero. Isso é ótimo. Com nossa marca, nossa idiossincrasia, a leitura fica ainda mais prazerosa. De preferência, sem tiroteio.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Uma mentira com mais de 700 anos?

       As Viagens de Marco Polo tem marcado milhões de pessoas por mais de setecentos anos. Na infância, viajei no livro por todo o Oriente. Com o veneziano, nasceu minha atração pela China, país que eu viria a conhecer e sobre o qual também escreveria um livro. Marco Polo revelou detalhes da longa Rota da Seda, como a riqueza das cidades, o poder do imperador mongol Kublai Khan na recém-construída Beijing, a vastidão de seu império, o avanço da cultura chinesa que já usava o papel como moeda no século 13, a vastidão e os perigos dos desertos e das montanhas, os muitos reinos existentes entre a Europa e a China, os costumes, os povos, os animais exóticos.
          Seu gosto pela descrição minuciosa enriqueceu o relato, transformado em bestseller manuscrito, pois a imprensa ainda não existia no Ocidente. Foram tantas as novidades reveladas, que poucos acreditaram nelas, e a obra ficou conhecida como Il Milione, isto é, Um Milhão de Mentiras. Historiadores ainda discutem se Marco Polo de fato trabalhou para Kublai Khan, pois não existem referências à sua presença na corte chinesa, tampouco ele cita a Grande Muralha ou hábitos locais arraigados, como beber chá. O veneziano criou um império com a imaginação?
          No entanto, por estar lá ou por ouvir de quem esteve, ele capturou o encanto e o espanto do Oriente. E o fez tão bem, que suas descrições serviram de base para mapas do século 14, além de seduzir todas as gerações desde que suas viagens vieram a público, ao redor de 1300.

          Foram de verdade ou de mentira? Não importa. As Viagens de Marco Polo continua sedutor. Como dizem os italianos, se non è vero, è bene trovato. Bene trovato por sete séculos. Parece mentira.

sábado, 13 de junho de 2015

Sexo é poder

       Existe muito modismo no campo material, mas no das ideias a tolice campeia. Entre a divagação e a práxis, entre a tevê e o blog, entre o aqui e o além, entre o céu e o inferno, entre o hedonismo e o estoicismo, há lugar para todo tipo de asneira e quimera, defendidas por argumentos à primeira vista racionais. Por mais estapafúrdia que seja a pregação, ela sempre consegue seguidores, da limpeza étnica ao suicídio coletivo de uma seita em nome de uma nave espacial escondida atrás do rabo de um cometa. O suicídio coletivo aconteceu há alguns anos, a limpeza étnica ocorre ainda hoje.
       Sandice, que não é privilégio de nosso tempo, quando investe contra a natureza humana, costuma buscar o respaldo divino para consolidar-se. Por exemplo, nos primeiros séculos da era cristã, o ascetismo era modismo, incensado como o melhor caminho para chegar a Deus. A carne significava a perdição: a mulher como um todo e o homem, da cintura para baixo, eram criações demoníacas. São Paulo julgou o celibato superior ao casamento. Dois influentes pensadores da época, Agostinho e Jerônimo, pregaram contra o ato sexual, tachando-o de repugnante e sujo. Na mesma linha de repúdio, Tertuliano considerou-o vergonhoso; Arnóbio, nojento e degradante; Ambrósio, podre. A condenação sobreviveu através dos séculos, provocando desde a autocastração de Orígenes até, durante a Era Vitoriana, o conselho de alguns médicos aos maridos ingleses para procurarem prostitutas, porque o orgasmo pago seria menos envolvente – menos pecaminoso, portanto – do que com as próprias esposas. Aliás, Freud, vitoriano de formação, debruçou-se com exagero sobre o sexo varrido para debaixo do tapete, reflexo de seu tempo. Libertou-se de totens e tabus, mas criou outros.
       Resultado do modismo da abstinência sexual: culpa para milhões de pessoas. Todo psicanalista deveria acender, a cada dia, uma vela para santo Agostinho e outra para são Jerônimo, agradecendo-lhes os clientes dilacerados pelo confronto entre um instinto desenvolvido pela natureza durante milhões de anos e uma filosofia incensada por meia dúzia de homens há meros vinte séculos. O celibato, abstinência levada ao paroxismo, é contra a vida. Se generalizado, mais louco que o suicídio de uma seita inteira em nome de um cometa, mataria toda a espécie. Outro paradoxo: ainda o defendem no século 21. Da boca para fora e da porta das igrejas para dentro. Controlar o ato sexual alheio dá poder. Muito poder.

       Ideias são produto de nossa mente, sujeitas, portanto, a modismos, do esbanjamento à virgindade – há quem, no outro extremo, julgue a pobreza e o tantrismo os grandes caminhos para a realização terrena. O ser humano, apesar das cambiantes concepções de mundo que adota, tem sido o mesmo em qualquer época. Basicamente, sobrevive e procria – em resumo, sobrevive para procriar. Para facilitar a tarefa, criou as civilizações e as culturas. Ao observá-las à distância, constatam-se as investidas contra as pessoas, as crendices apregoadas, as milenares superstições que perduram, as hipóteses de trabalho tornadas verdades, os delírios entronizados nas mídias, a falta de senso crítico. Por mais cruéis e insustentáveis que sejam alguns pontos de vista, jamais nos livraremos deles. Ainda bem. Isso se chama convívio, tolerância. A diversidade faz a beleza do mundo – um mundo cheio de graça, por sinal. Oxalá a graça do mundo não seja modismo.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

A arte de caçar lobisomem


          Você procura um livro com humor requintado, que o faça chorar de rir, contenha belas imagens e ofereça deliciosos achados linguísticos, porém sustente a fluidez que o leve, num susto, da primeira à última página? Você busca um personagem de carne e osso, que a gente acredita ser real, um personagem que gerou muitos filhos em nossa literatura, televisão e cinema? Pois então leia o romance O Coronel e o Lobisomem, de José Cândido de Carvalho, e deleite-se. Este autor escreveu pouco, mas, caramba, com que competência. O Coronel e o Lobisomem, por si só, ultrapassa em criatividade muitas extensas bibliografias.
          A obra aborda a vida, as aventuras e desventuras, neste e no outro mundo, do coronel Ponciano de Azeredo Furtado, coronel por trabalho de valentia e senhor de pasto por direito de herança, dono de um sabiá-laranjeira que valia mais que as pratas e os ouros do maior sultão das Arábias. Do alto de seus dois metros de altura, orgulhoso dos feitos e do nome, ele metia medo em suas terras e nas cidades vizinhas, graças ao porte físico e ao vozeirão. Usava e abusava dessas vantagens, era bondoso à sua maneira, mas tinha o miolo mole. Deixava-se arrastar por um rabo de saia e vangloriava-se das tantas virgens que deflorou ou das maldades que praticou. Além disso, gostava de matar onça-pintada.
          Ponciano era politicamente incorreto, tanto no comportamento, como no linguajar e no tratamento dado às pessoas. Hoje, poucos escritores se atreveriam a pôr, na boca e nos pensamentos de um personagem, palavras tão abusadas, para não cair nas garras dos censores de plantão e de sua falsa moralidade. Pois o que faz o coronel mais autêntico, mais marcante, mais carne e osso, é justamente a falta de travas na língua, o jeito desengonçado de expor as ideias esdrúxulas, de dividir sua experiência de vida e sua rusticidade. Ponciano encarna o poder decadente da aristocracia rural brasileira e luta para manter as aparências. Ele sai das páginas de O Coronel e o Lobisomem com a força que o lobisomem marca a imaginação de tanta gente. E marca nossa memória com garras de onça selvagem. Ou de lobisomem, tanto faz. É ler e gostar. 

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Literatura pra quê?

      Por que você lê? Lê porque quer se divertir, se entreter, passar o tempo? Talvez buscar a beleza do texto, fruir a criatividade, estimular seu senso estético? Você lê para adquirir informação, aumentar o conhecimento? Deseja, quem sabe, trocar umas horas de seu dia pela sabedoria que um escritor levou a vida inteira para adquirir? Ou é dos que gostam de viagens no tempo e no espaço, de grandes fantasias, de enredos que percorrem o mundo inteiro, epopeias que atravessam gerações, envolvendo a história de continentes e mares? Ou pertence à tribo dos fãs do horror, dos vampiros, dos magos, dos que mudam a realidade com o toque do poder sobrenatural? Talvez prefira contos, histórias curtas que nos pegam pelo pé e pela cabeça, com finais muitas vezes surpreendentes? Ou você adora poemas, esses voos da alma sintetizados, com frequência, num verso genial que a gente nunca esquece?
          Não importa a sua preferência, há sempre um livro que vai acertar em cheio no seu gosto, vai seduzi-lo, vai encantá-lo. Você pode comprar, pedir emprestado a um amigo, retirar na biblioteca, baixar no tablet ou no celular. O livro sempre está perto de você, para lhe acrescentar alguma coisa. Tudo que exige é um pouco de tempo e de atenção. Ele é o requinte maior que o ser humano desenvolveu, o fruto maior do cérebro. Abraça o universo, traz nossa alma, sentimento, desejo, sonho.
          O livro somos nós do jeito que viemos ao mundo, nus, deliciosamente humanos, fragilmente mortais em todos os séculos, mas capazes de saborearmos um pouquinho da eternidade. A eternidade fugaz de um livro diante dos olhos.  

quarta-feira, 10 de junho de 2015

A literatura e a desonestidade como escada social

        O filme Meia Noite em Paris, de Woody Allen, e os escândalos de corrupção em Brasília me remeteram a um livro que fala dos excessos dos anos 1920, a ruidosa década de grande prosperidade que desembocou no caos de 1929. O livro se chama O Grande Gatsby. Foi escrito por Francis Scott Fitzgerald, um norte-americano pobre fascinado pelo mundo dos milionários. Fitzgerald e Zelda, sua mulher, aparecem no filme de Woody Allen em meio a festas extravagantes, esbanjando dinheiro, querendo ser ricos a qualquer custo. Os políticos de Brasília também aparecem em meio a festas extravagantes, esbanjando dinheiro público, querendo ser ricos a qualquer custo, sobretudo às nossas custas.
          O Grande Gatsby trata desses personagens do alpinismo social levado às últimas consequências. Jay Gatz, que se transformaria no grande Gatsby, é um rapaz pobre apaixonado por Daisy, moça rica. A fim de conquistar a amada, Gatsby trata de se enriquecer por meios ilícitos. Depois de ajuntar muito dinheiro, para ostentar posses e atrair Daisy, Gatsby promove festas extravagantes, nas quais esbanja fortunas. Quase conquista Daisy. Fitzgerald atrapalha o amor, provocando um morticínio digno dos grandes folhetins.
          O romance é considerado um dos melhores da literatura norte-americana do século 20, com o que não concordo, mas sem dúvida merece ser lido. Não apenas pelo mérito literário, também pelo retrato de uma época de prosperidade que parecia eterna e acabou em tragédia, tragédia que também atingiu a vida particular do escritor Scott Fitzgerald, morto prematuramente aos quarenta e quatro anos. Morreu pobre como nasceu.
          Grandes festas, grandes arroubos, grandes roubos, grandes Gatsby. A história se repete no Brasil de hoje. Dinheiro continua a mola do mundo. Há pouco, quase trouxe outra grande depressão, como a de 1929. Vamos pagar a conta do desmando alheio por um bom tempo. Lá fora e aqui dentro do país.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Shakespeare era gay?

      Ser ou não ser, eis a questão: Shakespeare era gay? Esta pergunta frequenta as rodas acadêmicas e, de vez em quando, a mídia. Há quem o tire do armário em definitivo, quem diga que ele, casado e pai de três filhos, sequer passou perto de armários, há quem jure que o dramaturgo entrava e saía, com desenvoltura, de lá de dentro. Tem Shakespeare para todo o mundo. Do jeito que gostais, diria o Velho Bardo, com ironia. A suspeita tem várias origens. A maior aparece nos Sonetos. Dos cento e cinquenta e quatro que conhecemos, mais da metade fala de amores do poeta por um jovem. Amor tão profundo quanto o de Romeu e Julieta.
          O Soneto 75, por exemplo, abre com a declaração de que o tal jovem é, para o autor e seus pensamentos, como a comida para a vida. Nada mais explícito, certo? Não necessariamente. O fato de Chico Buarque ter feito músicas como se fosse mulher, declarando amor aos homens, não significa que tenha mudado sua opção sexual. Isso também vale para Shakespeare. Ele simplesmente se teria passado por um adulto envolvido com outro homem.
          No entanto, dizem os partidários de Shakespeare gay que o Soneto 20, no verso em que o tal jovem se torna senhor e senhora da paixão do poeta, o compromete sem volta.
          Muito ainda se escreverá sobre o assunto, porém jamais saberemos a verdade. Como também diria o dramaturgo, o que importa? A incerteza move o mundo. A ambiguidade move a literatura. Shakespeare, genial também como poeta e manipulador da ambiguidade, trouxe a dúvida para sua vida. É um motivo a mais para lermos seus belos sonetos.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

A rodada de pôquer que evitou uma guerra

Eu passava as férias num hotel em Puyehué, no Sul do Chile, na divisa com a Argentina. Tempo de ditaduras na América Latina. Tempo de tortura, disputa e arrogância. Num fim de tarde, a situação degringolou. De um lado e outro, os generais ameaçaram invadir e aniquilar os vizinhos. Ocupado com passeios com a família, eu ignorava que havia uma guerra iminente entre o Chile e a Argentina. Ao descobrir, estremeci, temendo virar picadinho, junto com os filhos. O gerente do hotel, para me tranquilizar e afastar qualquer possibilidade de perigo, convidou-me para um jogo de pôquer secreto, numa cabana perdida nas encostas dos Andes. Só descobriria quem eram os dois outros parceiros na hora do jogo. Ressabiado, aceitei.
O gerente e eu viajamos numa estrada de terra, quase atolando a cada dez metros. Após uma hora no meio da floresta, uma subida sem fim, chegamos à cabana. Nem bem nos assentamos ao redor de uma mesa feita com tronco de pinheiro, entra Carlos. Apresenta-se: é o comandante das forças armadas chilenas na região. Traz várias garrafas de Old Parr e Coca-Cola. Diz que o uísque fora confiscado de contrabandistas de fronteira e deveria ter sido enviado para Pinochet, mas, ele não entendia como, várias caixas tinham ficado para trás, e precisávamos consumi-las antes que perdessem a validade. Além disso, detestava Pinochet. Rindo muito, pediu minha ajuda para esvaziar a primeira garrafa. Imbuído de nobre espírito de latinidad, concordei. Carlos apreciava a bebida misturada ao refrigerante, meio a meio, um desperdício. A pecaminosa combinação tinha nome: chipe, ou algo parecido.
Ao final da terceira dose, escuto roncos de tanque de guerra. Começo da invasão? Delírio etílico? Nada disso. Num blindado leve, chega o misterioso companheiro que faltava. Pois não é que o dito cujo era justamente o comandante das forças argentinas? Os dois homens que, de acordo com os jornais e a boataria, deveriam trocar tiros e bombas no dia seguinte, passariam a noite jogando pôquer e bebendo uísque juntos. Tornaram-se amigos depois de apresentados por Fernando, o gerente do hotel, em sua festa de aniversário. A amizade, entretanto, não podia se tornar pública, senão lhes comprometeria a carreira nas forças armadas, ainda mais diante do clima de tensão existente entre Santiago e Buenos Aires. Daí tanto segredo, daí a preferência por estranhos, sobretudo estrangeiros, para completar o quarteto de blefadores.
Jogamos até a madrugada, enquanto nos divertíamos com piadas e casos de nossos três países. Levantamos os copos a cada gargalhada. Juanito, o militar argentino, morreu de rir quando lhe contei que seus compatriotas, para suicidar, pulam do alto de seus egos. 
Ajudados pela mediação escocesa, reviramos nossa latinidad, nosso caldo cultural com idênticos temperos, nossas raízes comuns, nossos mesmos tiques, nossas visões sobre a vida que, no fundo, coincidiam.
A guerra entre o Chile e a Argentina jamais aconteceu. Perdeu o ímpeto, pois os dois protagonistas se uniam numa mesa de pôquer, regada a uísque confiscado.
Para mim a Rodada de Puyehué teve gosto especial: ganhei dos três.          



sábado, 6 de junho de 2015

Viagens - modo de usar

Viagens nos ensinam a humildade. Com sutileza, despertam o tempo, o outro, o próprio viajante. Quanto mais longe vamos, mais nos desapegamos de orgulhos, pompas e idiossincrasias. Quanto mais pessoas conhecemos, mais nos conhecemos. Quanto mais lugares visitamos, mais admiramos o planeta, sua força, sua fragilidade, seu equilíbrio, seu tamanho. Aqui surge um paradoxo: crescemos quando nos apequenamos ante os continentes, ante a multiplicidade de costumes, riquezas, mitos e realidades, ante a vastidão das montanhas, planícies e mares, ante a pluralidade de raças e credos, ante a relatividade dos juízos. Viagens contrapõem a dimensão da Terra e a do ser humano. Provam que somos meras frações de um universo infinito. Ora, frações do infinito são o próprio infinito. Daí, talvez, nosso crescimento.

O mundo é maior que nossa aldeia, obviedade de que com frequência não nos damos conta. No entanto, o vilarejo mais distante tem segredos para revelar. Por outro lado, também portamos sabedorias. Resultado: ao encarar a diversidade, nossos preconceitos, sobretudo os que não admitimos possuir, afloram e provam-se ridículos. Aqueles arroubos tão arraigados pelos êxitos, origens, posses e realizações tornam-se patéticos diante do legado alheio, muitas vezes anônimo, no entanto arrebatador. Nos encontros da diferença, apagamos a tola impressão de que nosso tempo é o único, o mais brilhante, herdeiro de nenhum outro, erguido a partir de nossas conquistas. A boa viagem confunde, questiona, excita, acerta, faz pensar. É a maneira mais eficaz para descobrir nossa espécie e a nós mesmos em nossa total nudez.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Encontro com o demo e o puma na Patagônia

Sozinho no Sul do Chile, em pleno inverno patagônico, eu voltava do vulcão Antillanca rumo a Puyehué, quando o entardecer me pegou no final da caminhada de vinte quilômetros. Silêncio e paz a meu redor. Nem passarinho fazia barulho. Poucos quilômetros depois de Aguas Calientes, avistei um cavaleiro. Fiquei contente. Uma alma viva! O homem, de grande estatura, montava um descomunal cavalo preto. Vestia calça, camisa, jaleco, luvas e capa que cobria as ancas do animal, tudo preto. Até o chapéu de Zorro era preto. O olhar fixava um ponto no infinito, duro como bridão, contundente como espora. Trotava com galhardia, tão ereto que parecia amarrado a uma estaca de ferro sobre o arreio. Cumprimentei-o com um buenas tardes, foi lacônico comigo:
– Buenas – e implantou um meteórico sorriso na face pálida.
A rápida abertura da boca permitiu-me entrever os dentes metálicos, cor prateada. Nem um pingo de esmalte. Sorriso de aço. Senti arrepios. Quem usaria e abusaria de tanta esquisitice no corpo? E se fosse um bandido? De mim não sobraria nem um mindinho para contar meu sumiço. Além disso, a estranha figura bem poderia passar pelo demo: modelo perfeito, personificação do tinhoso em muitos relatos. Pobre cavaleiro... Tratava-se provavelmente de um fazendeiro retornando ao lar no fim do dia, e minha cabeça o associava ao nem-sei-o-quê.
Minutos depois, enquanto examinava os espetaculares mergulhos de rochas e depósitos de cinza vulcânica expostos nos cortes da estrada, testemunhos de violento passado geológico que continua no presente, enxerguei um puma a cinquenta metros de distância. Animal imponente, onça acinzentada pelo lusco-fusco, assustador. Farejamo-nos em reconhecimento mútuo, exalei o pavor, estudou-me com interesse. Petrificado, tentei despistar a bambeira nas pernas, a fraqueza que atrai o ataque do felino. Espichei o corpo, ergui os braços, pus a mão na cintura, só faltei ameaçá-lo: “Qualé, gatinho, vai encarar?”. Haviam-me alertado para a presença do bicho na área, matador sagaz. Ainda devia estar digerindo a criança que comera na véspera. De barriga cheia, olhou-me outra vez, atravessou a rodovia e sumiu, sem me dar a mínima. E eu dei no pé. Corri até que, com o coração na mão, cheguei a Puyehué. Ir tão longe para acabar no estômago de puma, onde se viu?
Na manhã seguinte, voltei ao vulcão Antillanca. De carro.


quarta-feira, 3 de junho de 2015

Uma espécie em extinção

      Muitos escritores odeiam os críticos literários, que consideram chupins do trabalho alheio. Dizem que quem não tem competência para escrever vira crítico. Discordo desses colegas. Críticos literários, profissionais em extinção no Brasil, quase sempre ligados ao meio acadêmico, ampliam nossas possibilidades de leitura, mostram virtudes e defeitos de um livro, comparam-no a outros, às vezes enveredam pela vida do autor e descobrem fatos relevantes para a análise, facilitam a escolha do leitor que não tem tempo para acompanhar lançamentos ou reedições.
          O crítico reflete seu tempo e sua cultura, daí a multiplicidade de pontos de vista sobre uma mesma obra. Por exemplo, houve quem recebesse Grande Sertão: Veredas com reservas. Há quem ainda faça restrições à literatura atual – ou quem tenha tachado de geniais trabalhos que sucumbiram ao peso dos anos. Pecados veniais, contudo.
          Apesar de serem poucos os remanescentes no Brasil, pela diversidade de formação os críticos duelam entre si, cada qual na defesa de seu feudo intelectual. Atacam-se às vezes com acidez, exibindo armas como dogmatismo, estruturalismo, estilo, fenomenologia, impressionismo. Alguns se valem de uma erudição estéril, outros, de sua verve catilinária. Alguns defendem enredos na grande tradição europeia, outros valorizam mais os transgressores. Uns são enxutos, outros abusam da verborreia.
          Sim, muitos escritores os desprezam, mas os críticos são, porém, imprescindíveis. Com seu conhecimento e intuição acertam mais do que erram. Diante de um mercado inundado por muito lixo, modismo e oportunismo, ajudam-nos a economizar tempo e dinheiro. Quase sempre nos garantem uma boa leitura. Uma pena que estejam a um passo da extinção. 

terça-feira, 2 de junho de 2015

Autoajuda para quem quer viver muito

      De vez em quando eu me flagro com preconceito literário. Por exemplo, rejeito escritores que nunca li. Típico “não li e não gostei”. Descubro que alguém fez minha cabeça, portanto fui induzido, manipulado. Para tirar a teima, saio em busca do autor preterido, vasculho seus livros, chego à minha própria conclusão.
          A iniciativa me rendeu gratas surpresas. Quanta gente boa eu renegava por cisma, por ignorância, por ouvir dizer. Um desses autores era Marco Túlio Cícero, escritor, advogado, orador, político e filósofo da Roma antiga, que nasceu mais de cem anos antes de Cristo. Pois eu achava que Cícero fosse apenas uma aula de latinório descartável, paixão de beletrista, expoente de conhecimento ultrapassado. Pois me enganei. O homem é bom, bom mesmo. Continua atual. Escreve com clareza, concisão e verve, reflete sobre questões relevantes como a amizade e a velhice, domina a sabedoria de seu tempo (até do nosso), tem uma língua ferina, catilinária, quando decide criticar.
       Tomemos, por exemplo, seu livro Saber Envelhecer. Quem nunca ficará velho? Quem nunca se indagará a respeito da morte? Quem abraçou os prazeres da vida nunca se verá obrigado a renunciar a vários deles? A outra opção para quem não deseja envelhecer não é muito prazenteira.
          Cícero, sozinho, vale por uma centena de livros de autoajuda. Aliás, muitos autores de autoajuda bebem em Cícero e não lhe dão o devido crédito. Reciclam, com grande perda de conteúdo, o que o mestre romano escreveu há tantos séculos. Aproveitam-se da desinformação e do preconceito contra o antigo. Miram pessoas que acham que o mundo nasceu ontem. Contra o preconceito, nada como o contato direto. Beba direto na fonte, tire suas próprias conclusões. Como fez Cícero, seja seu próprio juiz. E colha bem o seu dia.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Aterrissagem no meio do Himalaia

Estava a caminho de Leh, capital do Ladakh, na Índia, fronteira com Paquistão, China e Tibete. Zona conturbada. Bombas, ataques terroristas, brigas entre hinduístas e muçulmanos, ameaças atômicas entre Índia e Paquistão, milhares de refugiados tibetanos. No caminho, a bordo de um Boeing 737, a paisagem do Korakoram, uma das cadeias do Himalaia, me arrebatou. A beleza paga a viagem até Leh – e deixa troco. Sobrevoei quilômetros e quilômetros de picos nevados, agudos como se feitos ontem à noite, encostas íngremes, passos profundos, geleiras, canyons, vales, morenas. O paliteiro, de tão alto, quase espetava a fuselagem. Naquela vastidão branca, nunca se acharia um avião que tivesse a insensatez de cair. A beleza rude, até agressiva, pela insignificância que reduziu a mim e à máquina que me transportava, misturou fascínio e temor. Depois de me acostumar com a grandiosidade, percebi a graça do conjunto: o Korakoram é uma bandeja de suspiros saindo do forno. Suspiros de pedra e gelo.
De repente, um ponto ainda mais proeminente. É o K2, avisou o piloto, o segundo pico mais alto do planeta e o mais difícil de escalar. Com arrepios adicionais, dei-me conta de que estava longe de casa, perto do fim do mundo. Relaxei-me. O fim do mundo é lindo.
O frio na barriga triplicou quando enxerguei a pista de Leh, situada a 4000 metros de altitude e cercada por precipícios. Julguei impossível aterrissar um 737 na extensão de um campo de futebol. E, no final da pista, um monastério budista fazia as vezes de um gol. Nada disso. A construção estava mais para um goleiro que, em guarda sobre um morro, se dispunha a cercar tudo que viesse do céu ou da terra.
O piloto manobrou entre os cumes e, viciado em fortes emoções, literalmente deixou a aeronave despencar. Quando eu jurava que bateria no solo com a ponta da fuselagem, o Boeing ergueu o nariz. Tocou o asfalto já com os freios travados, porém com o dobro da velocidade aconselhável, assim me pareceu, impressionado pela rapidez com que rolávamos. Eu só pensava no danado do monastério cada vez mais perto e no susto dos monges budistas que, após o estrondo, encontrariam dentro de casa um bando de corpos irreconhecíveis.
O avião começou a tremer. Tremeram as cadeiras, como que arrancadas do suporte, tremeu o teto, tremeu o chão. As mesinhas dos assentos desprenderam-se, os bagageiros abriram-se, objetos caíram, um japonês levou uma garrafada na testa, a dor liberou seu pavor num grito agudo. Na cozinha, pratos espatifaram-se. O carrinho de bebidas se soltou, avançou sobre os passageiros. Duas aeromoças com os cintos afivelados se entreolharam, trocaram expressões de pânico. A mais despachada esticou a perna, calçou as rodinhas com o sapato, resolveu o problema.

Do lado de fora, chegava o urro ensurdecedor de metal contra metal, qual disco de freio de carro completamente desgastado. As turbinas assobiavam de tanto soprar o ar com fúria. Os flaps, eu os via a ponto de saltarem fora da asa. É o fim do mundo para mim, concluí. Vou virar churrasco.
No segundo anterior à tragédia, veio o cavalo de pau. O 737 rodopiou, cantou pneu, rangeu e, milagre!, ficou quietinho voltado para o terminal, resfolegante, pálido com a enorme descarga de adrenalina. O japonês com galo nascendo na testa bateu palmas. Todos a bordo o acompanharam. Aterrissar em Leh é emoção garantida. Beleza também.