terça-feira, 28 de julho de 2015

RELIGIÃO PARA TODOS OS CREDOS

Para descobrir a religiosidade existente atrás do corriqueiro, a receita é simples: basta um jantar em casa. Sozinho. Para começar, feche as janelas, diminua a luminosidade, vista uma roupa confortável. Prepare sua comida, um macarrão por exemplo. Escolha o vinho de sua preferência. Acenda velas e incenso suave. Ponha para tocar um disco de música antiga, como do compositor quinhentista Josquin des Prés (ou Desprez). Pronto, está montado o aparato para a travessia, ou melhor, a religação com você mesmo e a nossa espécie.
Saboreie sem pressa a massa, o vinho, perceba sua cor rubra ou dourada contra a chama, a música, os odores, a penumbra, o contato da boca com a comida e a bebida, descubra o peso do talher, fique atento à mastigação. Pense nas centenas de pessoas que contribuíram para seu prazer. Quantos plantaram e colheram o trigo, construíram sua casa, desenharam, fabricaram e transportaram a baixela, montaram o aparelho de som, fizeram as velas, podaram as videiras, quantas horas Josquin investiu até encontrar a combinação correta das notas musicais. As pessoas se uniram através dos tempos para possibilitar seu mergulho na plenitude, isto é, em você mesmo. Gente famosa e anônima, viva e morta, através de seus ofícios, rendeu-lhe uma homenagem, sem conhecê-lo, sem saber que você viria a existir.
Conscientize-se do elo entre os séculos, abrace o coração da festa, desvele a origem desses requintes, o gênio humano.
Integre-se agora, sem receio, ao caudal do melhor lado de nossa natureza. Descubra que continuamos a medida e o sentido de todas as coisas. Eis a religiosidade por excelência. Põe em contato as gerações passadas, presentes e futuras, numa cadeia de fraternidade e de partilha que exalta nossa grandeza e nossa fragilidade. Liga-nos às demais espécies e ao mundo. Aumenta nossa responsabilidade. Perceba o paradoxo: se o experimento der certo, talvez você se sinta maior ao se transformar em simples ponte entre épocas, átimo de consciência na enormidade do tempo.
O que é isso? Transcendência, delírio, epilepsia do lobo temporal? Quem sabe? Pelo sim, pelo não, vale a pena tentar religar-se à própria espécie, um gesto importante, mas pouco praticado. Entre a vastidão e o nada, paira a vida. Entre as possibilidades e as incertezas, colhemos os dias. Bom apetite.


2 comentários:

Anônimo disse...


Caro Giffoni, o macarrão metafísico saiu melhor que a encomenda. Que tempero!
A aptidão de desfrutar esse silêncio, defronte a uma cachoeira, no alto de uma serra ou simplesmente na solidão de um vinho com macarrão, é a mais importante busca da humanidade. Curiosamente, a mais sonegada...

Aguardamos, famintos, o próximo prato!

BlogdoLuísGiffoni disse...

Pois é, o tempo passa , e a gente nos sonega as coisas importantes da vida...