Para descobrir a religiosidade existente atrás do
corriqueiro, a receita é simples: basta um jantar em casa. Sozinho. Para
começar, feche as janelas, diminua a luminosidade, vista uma roupa confortável.
Prepare sua comida, um macarrão por exemplo. Escolha o vinho de sua
preferência. Acenda velas e incenso suave. Ponha para tocar um disco de música
antiga, como do compositor quinhentista Josquin des Prés (ou Desprez). Pronto,
está montado o aparato para a travessia, ou melhor, a religação com você mesmo
e a nossa espécie.
Saboreie sem pressa a massa, o vinho, perceba sua cor rubra ou dourada contra a chama, a música, os odores, a penumbra, o
contato da boca com a comida e a bebida, descubra o peso do talher, fique
atento à mastigação. Pense nas centenas de pessoas que contribuíram para seu
prazer. Quantos plantaram e colheram o trigo, construíram sua casa, desenharam,
fabricaram e transportaram a baixela, montaram o aparelho de som, fizeram as velas, podaram as
videiras, quantas horas Josquin investiu até encontrar a combinação correta das
notas musicais. As pessoas se uniram através dos tempos para possibilitar seu
mergulho na plenitude, isto é, em você mesmo. Gente famosa e anônima, viva e
morta, através de seus ofícios, rendeu-lhe uma homenagem, sem conhecê-lo, sem
saber que você viria a existir.
Conscientize-se do elo entre os
séculos, abrace o coração da festa, desvele a origem desses requintes, o gênio
humano.
Integre-se agora, sem receio, ao caudal
do melhor lado de nossa natureza. Descubra que continuamos a medida e o sentido
de todas as coisas. Eis a religiosidade por excelência. Põe em contato as
gerações passadas, presentes e futuras, numa cadeia de fraternidade e de
partilha que exalta nossa grandeza e nossa fragilidade. Liga-nos às demais espécies e ao mundo. Aumenta nossa responsabilidade. Perceba o paradoxo: se
o experimento der certo, talvez você se sinta maior ao se transformar em
simples ponte entre épocas, átimo de consciência na enormidade do tempo.
O que é isso? Transcendência, delírio,
epilepsia do lobo temporal? Quem sabe? Pelo sim, pelo não, vale a pena tentar
religar-se à própria espécie, um gesto importante, mas pouco praticado. Entre a
vastidão e o nada, paira a vida. Entre as possibilidades e as incertezas,
colhemos os dias. Bom apetite.
2 comentários:
Caro Giffoni, o macarrão metafísico saiu melhor que a encomenda. Que tempero!
A aptidão de desfrutar esse silêncio, defronte a uma cachoeira, no alto de uma serra ou simplesmente na solidão de um vinho com macarrão, é a mais importante busca da humanidade. Curiosamente, a mais sonegada...
Aguardamos, famintos, o próximo prato!
Pois é, o tempo passa , e a gente nos sonega as coisas importantes da vida...
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