quinta-feira, 23 de julho de 2015

A mulher que confundiu um papagaio com o Espírito Santo

            Gustave Flaubert, o grande escritor francês, morreu aos cinquenta e nove anos, em 1880. Sempre que o releio, impressiona-me a atualidade de sua escrita, embora treze décadas e meia tenham decorrido desde sua morte. Sem falar na qualidade do texto. Pouco envelheceu.
            Além do genial romance Madame Bovary, entre outras obras, Flaubert nos deixou uma pequena novela, na qual transborda seu talento e criatividade. Em apenas setenta páginas, constrói uma obra-prima chamada Um Coração Singelo. Narra a vida de Felicidade, empregada na casa da senhora Aubain durante meio século.
            Felicidade é simplória, pau para toda obra, da cozinha ao jardim à babá. Mora num pequeno cômodo, mal iluminado, com aspecto oscilante entre uma capela e um bazar. Toma para si as dores da família com a qual trabalha, põe em segundo plano as dores da própria família, exceto talvez a perda do sobrinho Vítor, que a explorava a pedido da irmã e do cunhado. Como grande tesouro no fim da vida, Felicidade ganha o papagaio Lulu que, depois de morto, é empalhado e enfeita seu quarto, onde adquire ares de Espírito Santo na mente religiosa e senil da empregada.
            A recriação de uma vida tão singela, com detalhes realistas de personagens e ambientes, pontuados por fina ironia que beira o sarcasmo, transforma Um Coração Singelo numa das mais belas novelas do século 19.
            Em pleno século 21, Felicidade ainda existe. Ela é tristonha, sem brilho. Se olhar a seu redor, você a identificará em diversas pessoas que vivem e morrem para lhe garantir um bom dia. E, em busca de um mínimo sinal de esperança na vida, ainda enxergam o Espírito Santo em qualquer papagaio que lhe apresentem como tal.       


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