sexta-feira, 7 de agosto de 2015

TRAVESSIA DOS ANDES: DESAFIO NA NEVE

           Imagine uma cordilheira dentro de outra, mãe e filhote. Imagine o filhote com dezenas de picos nevados a mais de cinco ou seis mil metros de altitude, agrupados num perímetro de apenas 165 quilômetros. Isso existe? Sim, existe. Existe no meio dos Andes peruanos, está separada do maciço central, tem características próprias e se chama Huayhuash. Atravessá-la é um desafio radical. Num único dia, saí de uma densa mata de quenuales a três mil e quinhentos metros de altitude, cheguei à neve a cinco mil e dormi a quatro mil, na puna andina. Encontrei por lá gente de trinta países, nenhum brasileiro. Ainda não descobrimos o lugar.
          Huayhuash é uma aventura que marca não apenas pela beleza, também pela diversidade de clima, de relevo, de plantas e animais, pelos lagos cristalinos, pelo estrondo das avalanchas, pelo silêncio da noite, pela pureza do ar, pelo vento que arrasta e congela. Nem pense em ir, se você gosta de conforto. Barraca é o único hotel. Estrelas, o triplo das que vemos em nossas cidades, são o cobertor.
          Huaywash tem o som, em inglês, de “why wash?” ou “por que se lavar?”. Ao percorrer suas trilhas, em média doze dias, é difícil tomar banho. Os riachos que descem das geleiras não nos convidam para mergulhos. De tão frios, trazem risco de hipotermia. Na única fonte termal que encontrei, ao pé de um vulcão, tive a companhia de uma nevasca que me roubou a coragem de sair do poço. Punha a cara fora da água, o cabelo congelava, e eu mergulhava de volta no quentinho.  
          Belas montanhas com nomes sonoros e estranhos compõem a paisagem, brancas de doer ao sol: Yerupajá, Jirishanca, Ninashanca e Siula. O Siula, aliás, foi palco da façanha relatada no livro “Tocando o vazio”, prova da enorme capacidade de resistência do ser humano.
          Huaywash, de tão remota e selvagem, foi esconderijo do Sendero Luminoso, o famoso grupo guerrilheiro peruano. Sendero Luminoso, ou Caminho Luminoso, seria um nome apropriado para a cordilheira. Ali se veem todas as possíveis nuanças de luz, sobretudo aquela que, lá no alto dos cumes, onde o ar rarefeito embevece o cérebro, parece brotar de dentro da gente e iluminar o presente, o passado e o futuro, revelando a imensa curtição de estar neste mundo. À luz de Huayhuash, a vida pulsa através de todos os tempos num único momento. Um eterno momento. Quem resiste a lugar desses?   

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