Até hoje ignoro a grafia
correta do lugar: Sakara, Sakkhara, Saquara ou apenas Sacara? Fica à beira do
deserto da Líbia, no Egito, a uns cinco quilômetros do Nilo. Lembra dezenas de
casamatas arrasadas por bombas. O inimigo, na verdade, se chama tempo. Em quase
cinco mil anos, a ação das intempéries e do ser humano pôs abaixo essas
construções, as pirâmides mais antigas conhecidas. São tumbas em degraus, para
levar os primeiros faraós até a eternidade. Pelo menos, deveriam levar.
Dizem que os astecas e os
maias as copiaram com a ajuda de discos voadores, da Atlântida ou de força
antigravitacional. Prefiro manter o tiquinho de lucidez que me resta e ficar de
fora da polêmica. A precaução preserva a sanidade. Graças a esse expediente,
safei-me de dois fantasmas em Sacara.
Quem quiser conhecer as ruínas
de Sakara deve pagar o ingresso, que dá direito à visita e ao guia que conta a
história de cada monumento e de seu faraônico ocupante. Melhor dizendo,
ex-ocupante, pois os ladrões não pouparam nem os cadáveres. Por séculos, na
falta de Viagra, o pó de múmia fez o milagre. Coitados dos faraós. Em vez de
subir aos céus, subiram outras coisas.
À entrada de uma
pirâmide, o guia, alegando cansaço, pediu-me para continuar sozinho pelo túnel
que sumia terra abaixo. Grandes surpresas me aguardavam, avisou. As pinturas
nas paredes me distraíram, fiquei entusiasmado, dobrei os corredores à esquerda
e à direita, a claridade diminuiu, apagou. De repente, surgiram dois homens
mal-encarados com lanternas iluminando o rosto. Gente ou fantasma?
Alegaram ser
guarda-pirâmides e exigiram vinte dólares para me autorizar a permanência.
Mostrei-lhes o ingresso, com direito a visitar toda Sacara. Em resposta, Cosme
e Damião abriram a camisa e expuseram dois punhais na cintura. Dourados,
curvos, com cabo de madrepérola. Fiquei paralisado, mumificado. Múmia
paralítica.
Passado o impacto, achei
os dois argumentos de aço muito convincentes. Baratos até. Enfiei a mão no bolso, tirei uma
nota, entreguei-a para os guardas. O sorriso de um emendou-se ao do outro,
fizeram salamaleques, conduziram-me pela tumba, explicaram os afrescos,
decifraram os hieróglifos, duas damas de tão gentis. Nada entendi, tampouco
queria. Minha curiosidade que se danasse. Pensava apenas em sair da clausura o
mais rápido possível.
Meia hora mais tarde,
enxerguei a luz do dia. Um alívio. Cosme e Damião agradeceram minha
generosidade, renovaram as mesuras e evaporaram em direção à escuridão do
túmulo.
Ao narrar o acontecido
para o guia, ele desconfiou do relato. Ninguém, exceto eu, entrara lá dentro.
Será que eu tinha cara, além de paralítica, de múmia idiota? Pois é. Em Sakkhara,
os fantasmas gostam mesmo é de dinheiro vivo. Ou dinheiro dos vivos, tanto faz.
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