terça-feira, 4 de agosto de 2015

A MÚMIA PARALÍTICA

     Até hoje ignoro a grafia correta do lugar: Sakara, Sakkhara, Saquara ou apenas Sacara? Fica à beira do deserto da Líbia, no Egito, a uns cinco quilômetros do Nilo. Lembra dezenas de casamatas arrasadas por bombas. O inimigo, na verdade, se chama tempo. Em quase cinco mil anos, a ação das intempéries e do ser humano pôs abaixo essas construções, as pirâmides mais antigas conhecidas. São tumbas em degraus, para levar os primeiros faraós até a eternidade. Pelo menos, deveriam levar.
       Dizem que os astecas e os maias as copiaram com a ajuda de discos voadores, da Atlântida ou de força antigravitacional. Prefiro manter o tiquinho de lucidez que me resta e ficar de fora da polêmica. A precaução preserva a sanidade. Graças a esse expediente, safei-me de dois fantasmas em Sacara.
      Quem quiser conhecer as ruínas de Sakara deve pagar o ingresso, que dá direito à visita e ao guia que conta a história de cada monumento e de seu faraônico ocupante. Melhor dizendo, ex-ocupante, pois os ladrões não pouparam nem os cadáveres. Por séculos, na falta de Viagra, o pó de múmia fez o milagre. Coitados dos faraós. Em vez de subir aos céus, subiram outras coisas.
      À entrada de uma pirâmide, o guia, alegando cansaço, pediu-me para continuar sozinho pelo túnel que sumia terra abaixo. Grandes surpresas me aguardavam, avisou. As pinturas nas paredes me distraíram, fiquei entusiasmado, dobrei os corredores à esquerda e à direita, a claridade diminuiu, apagou. De repente, surgiram dois homens mal-encarados com lanternas iluminando o rosto. Gente ou fantasma?
      Alegaram ser guarda-pirâmides e exigiram vinte dólares para me autorizar a permanência. Mostrei-lhes o ingresso, com direito a visitar toda Sacara. Em resposta, Cosme e Damião abriram a camisa e expuseram dois punhais na cintura. Dourados, curvos, com cabo de madrepérola. Fiquei paralisado, mumificado. Múmia paralítica.  
      Passado o impacto, achei os dois argumentos de aço muito convincentes. Baratos até. Enfiei a mão no bolso, tirei uma nota, entreguei-a para os guardas. O sorriso de um emendou-se ao do outro, fizeram salamaleques, conduziram-me pela tumba, explicaram os afrescos, decifraram os hieróglifos, duas damas de tão gentis. Nada entendi, tampouco queria. Minha curiosidade que se danasse. Pensava apenas em sair da clausura o mais rápido possível.
      Meia hora mais tarde, enxerguei a luz do dia. Um alívio. Cosme e Damião agradeceram minha generosidade, renovaram as mesuras e evaporaram em direção à escuridão do túmulo.
       Ao narrar o acontecido para o guia, ele desconfiou do relato. Ninguém, exceto eu, entrara lá dentro. Será que eu tinha cara, além de paralítica, de múmia idiota? Pois é. Em Sakkhara, os fantasmas gostam mesmo é de dinheiro vivo. Ou dinheiro dos vivos, tanto faz.








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